Crônicas - Glauco Olinger - Racha o Ambrósio |
De repente, Mariquinhas começou a realizar fantasias
Um certo Jorge, ex-ferrador de cavalos, do tempo em que as carroças
eram o principal meio de transporte, conta que numa fazenda no
interior de Minas viviam, na mais insuspeita felicidade, marido e
esposa, atados para sempre pelo velho e piedoso frade que, de vez em
quando, realizava nas capelas dos latifúndios o sétimo sacramento,
que hoje em dia anda meio desmoralizado.
Ele, dono de três mil hectares de pastos povoados com gado bovino e
animais de arreio, era respeitadíssimo na região. Falava com
mansidão, mas sua voz pausada e grave tinha o efeito de um raio
quando emitia uma ordem à peonada. Tinha meia estatura, atarracado,
ombros largos, pescoço curto e musculoso sob uma ganacha quadrada
que segurava dentes enormes e escurecidos pelo fumo de corda. A pele
do rosto era escurecida pelo sol dos campos, mas a testa era
esbranquiçada a partir da linha que o chapéu de abas largas lhe
cobria a cabeça. Dois olhos azuis entre pálpebras apertadas
enxergavam uma rês perdida a quilômetros de distância. Chamava-se
Ambrósio. Bem-dotado e macho pra burro, na opinião das meninas do
cabaré da vila, tinha completo domínio sobre Mariquinhas, sua
recatada esposa.
Ela era bem-feitinha de corpo: cintura de vespa, mãos e pés pequenos
que se harmonizavam com os seios bíblicos, em cachos de uva, e ancas
redondas de uma potranca árabe.
Segundo exigências do marido, tinha que andar sempre de vestido
comprido, gola apertada no fino pescoço, sandálias fechadas, e os
longos cabelos negros sempre esticados, puxados para trás e
amontoados em forma de coque, preso por uma travessa feita de chifre
de boi crioulo.
Mariquinhas era todo recato e entrega para seu amo e, ao mesmo
tempo, querido Ambrósio. Gostava de fazer o que ele queria, fosse à
noite, fosse ao dia.
E ele gostava do que ela fazia. Por isso, viviam os dois escambando
juras de amor com frases entrecortadas, mas com cuidado que ninguém
as escutasse para que ele não perdesse a autoridade.
Mas, como não há bem que sempre dure, um dia, sem nenhum aviso
prévio, morre de fulminante infarto, no leito quando fazia a festa,
o Ambrósio.
A viúva põe luto fechado e passa a chorar a
morte do esposo amado, na solidão da alcova e no vazio das
noites. E, para reverenciá-lo eternamente, manda esculpir, em
madeira de lei e em tamanho natural, a figura do inesquecível
esposo, colocando-a dento do quarto em posição estratégica para que
pudesse vê-la da cama onde os dois viveram momentos, a um só tempo,
de ternura e alucinação. Toda noite, ao pé da estátua, ela orava
contrita e, depois, devaneava saudosa.
Já decorria um ano que a viúva vivia enclausurada e inconsolável,
quando chega à fazenda, oferecendo quinquilharias, um mascate. Na
mala trazia perfumes afrodisíacos, pó-de-arroz, batom vermelho,
colares, pulseiras, correntinhas de plaquê e outras bugigangas que
atraíam mulheres daquele tempo e lugar. Falava com desenvoltura e
ela respondia que estava de luto e não podia usar aquelas coisas.
Ele mostrava uma camisola de renda e dizia que tinha certeza de que
ia ficar bem nela. Pedia licença, e colocava com jeito, um vestido
sobre o busto dela ou, delicadamente, encostava um brinco no lobo da
orelha e ela, ruborizada, começava a admitir estranhas fantasias,
sepultadas há mais de um ano. Foi no quarto, trocou de vestido,
soltou os cabelos, passou batom vermelho nos lábios carnudos, chamou
a empregada e ordenou:
- Esquente um
café para o seu Adolar! (este era o nome do mascate).
- Mas não tem
lenha, D. Mariquinhas
- Racha o Ambrósio!
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